Estamos vivendo um tempo em que as relações entre família e escola necessitam ser reinventadas. A parceria da família nos processos de aprendizagem de crianças e adolescentes nunca foi tão necessária. Os professores propõem atividades, cuidadosamente planejadas, considerando as necessidades de aprendizagem dos estudantes em cada ano escolar, com a intencionalidade de favorecer o desenvolvimento de competências e habilidades definidas nos Planos de Estudos da Escola, em consonância com as propostas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). E a família, por sua vez, colabora para que o estudante realize as atividades, visando a introdução, consolidação ou ampliação dos conceitos propostos.

Quando o professor planeja, ele também leva em conta as singularidades das crianças, mas é em suas intervenções cotidianas, em sala de aula, que as necessidades individuais são detectadas, por meio da escuta sensível do mestre, ao interagir com a turma e com cada criança individualmente. Essa interação cotidiana, hoje, acompanhando o processo de aprendizagem de cada criança e adolescente, está, também, a cargo da família, fato que, certamente, irá enriquecer e qualificar o desenvolvimento dos estudantes.

E a Matemática, como pode ser abordada em tempos de Ensino Domiciliar? Tenho acompanhado os professores dos Anos Iniciais e observado o compromisso de todos em reinventar novas formas de planejar e propor atividades que envolvam as famílias, para que as crianças se organizem e se sintam mais confiantes na realização do trabalho, dos jogos e dos encontros on-line. Sim, estamos vivendo um tempo novo, que exige novas formas de interagir e de aprender.

Nesse sentido, a presença interessada dos pais favorecerá a aprendizagem da criança, analisando, de forma conjunta com seu filho ou filha, as propostas encaminhadas pela escola. O diálogo entre pais e filhos sobre as demandas da escola e a construção participativa de uma rotina de estudo colaboram para que a criança se sinta mais segura. Enquanto a criança realiza uma atividade de Matemática, os pais não devem se preocupar com a rapidez pela “resposta certa”, melhor é investir o tempo necessário para que a criança adquira confiança na sua capacidade de pensar e de aprender. Para tanto, convém que se valorize, sempre, as pequenas conquistas da criança, encorajando-a a retomar uma resposta ou refazer uma atividade, quando necessário, qualificando-a. O pai ou a mãe que se dispõe a aprender junto com os filhos logo se dá conta de que a criança pensa, calcula e soluciona várias situações-problema de uma forma diferente da sua. Isso causará uma surpresa que, certamente, irá aguçar a curiosidade do próprio adulto: é possível que meu filho pense de uma forma diferente da minha e chegue na resposta certa? É bastante desafiador reconhecer outras maneiras de calcular ou de solucionar uma mesma situação-problema! Por outro lado, o fato de a criança constatar que os pais se surpreendem e reconhecem sua maneira diferente e adequada de pensar faz com que ela se sinta valorizada e encorajada a perseverar no desenvolvimento de sua autonomia.

Com os filhos mais velhos, que frequentam os anos finais do Ensino Fundamental ou já estão no Ensino Médio, a melhor participação da família no processo de aprendizagem é quando ela se dispõe a reaprender conceitos matemáticos talvez já esquecidos. Nesse sentido, lembro de minha neta, já no Ensino Médio, precisando estudar para uma prova que envolvia o cálculo de logaritmos. Ela passou o final de semana comigo para estudarmos juntas. Fazia uns 40 anos que eu não pensava em questões relacionadas ao cálculo de expoentes, por meio de logaritmos ... Confessei minha insegurança frente ao conteúdo e combinamos que iríamos de fato “estudar” juntas. Assistimos a alguns vídeos no YouTube e trabalhamos em conjunto: eu reaprendendo e ela me surpreendendo com sua agilidade para pensar cada questão que resolvíamos. Após a prova, perguntei-lhe: “Como nos saímos na prova?” E ela respondeu: “Fomos superbem, vó. Obrigada!” Sim, o sucesso dela, era também o meu! Melhor do que aprender sobre logaritmos, foi a experiência de aprendermos juntas. As crianças e os jovens aprendem pelo exemplo. O adulto pode e deve ser um bom modelo de sujeito aprendente, sujeito que tem coragem de dizer “não sei, mas vamos pesquisar ...”, sujeito que busca, coopera, pergunta, erra, refaz, acerta, e aprende, compartilhando trajetórias do pensar.

Mas, o trabalho com a Matemática, nesse tempo de isolamento, em que o ensino domiciliar se faz necessário, não deve se restringir às atividades propostas somente pela escola. É preciso inserir a Matemática no contexto da vida e da convivência familiar. Uma convivência que precisa, apesar dos contratempos, ser alegre, com atividades domésticas partilhadas, quando possível, e, que, acima de tudo, garanta, aos pequenos, viver sua infância.

A partir dos estudos de Jean Piaget e de proposições posteriores, sabemos que o desenvolvimento matemático ocorre na medida em que somos mobilizados a estabelecer relações e a solucionar situações-problema em nosso cotidiano. O conhecimento matemático deriva da reflexão do sujeito sobre suas ações. A construção do conhecimento matemático depende, portanto, da experiência, mas ela não será suficiente. É preciso que o sujeito insira a experiência em um sistema de relações que lhe permita explicar, interpretar e traduzir a experiência. Portanto, a matemática, além de ação é, também, linguagem.

Nessa perspectiva, a família pode encorajar a criança a experienciar situações matemáticas no contexto de sua vida doméstica, favorecendo o processo de construção desse conhecimento, por meio do diálogo e da problematização das experiências. Então, mãos à obra! Vamos pensar em alguns exemplos?

1. Quando a criança brinca, ela estabelece muitas relações, exercita a imaginação criadora, inventa, transforma; logo, desenvolve, entre tantas habilidades, o pensamento lógico-matemático. Também sabemos que a criança precisa se movimentar em casa. Para os pequenos, até cinco anos, por exemplo, poderíamos montar circuitos com estações numeradas em cartões: 1, 2, 3, 4, 5 ... Em cada estação, a criança realizaria uma atividade previamente combinada: andar em equilíbrio sobre uma corda; lançar bolas em uma cesta; virar cambalhota; fazer polichinelo; empilhar blocos... Bem oportuno seria realizar um desenho, junto com a criança, para representar cada atividade e dispor esse símbolo junto aos cartões numerados. A brincadeira do circuito poderia se repetir seis vezes. Nesse caso, poderíamos separar, com a ajuda da criança, seis tampinhas para que ela guardasse uma a uma, em um pode, a cada finalização do circuito, até que completasse as seis rodadas. Também, poderíamos propor brincadeiras de ginástica, contando, em voz alta, a repetição de cada movimento do 1 ao 10. Chegando no dez, faz-se outro movimento.

2. Chamar a criança pequena para colaborar na arrumação da mesa, nas refeições, é uma excelente estratégia para a construção do número: ”Podes separar um guardanapo para cada um? Quantos vais precisar? Mostra, com teus dedinhos, quantos guardanapos vais separar? Um para o papai, outro para a mamãe, outro para o mano e outro para mim”. A criança ergue os 4 dedinhos, um a um, enquanto nomeia cada um de sua família.

3. Para colaborar na organização do quarto, ao guardar os seus brinquedos, a criança organiza-os, estabelecendo relações de semelhança, em lugares adequados, como caixa, cesto, gaveta ou prateleira. No processo de arrumação dos brinquedos, pode-se propor alguns desafios: “Quantos brinquedos possuis em tua coleção de carrinhos (ou de shoppinks, polly, dinossauros, ...)?, Vamos contá-los de dez em dez. Quantos grupinhos de 10, formaste? Sobraram mais alguns? Quantos têm, ao todo? Vamos registrar? Tens mais carrinhos, ou dinossauros? Quantos a mais?”

4. As crianças, espontaneamente, interessam-se em comparar as idades entre os irmãos, ou primos. Convém que analisem quantos anos um tem a mais do que o outro e descubram que essa diferença será constante, pois, quando uma faz aniversário e fica mais velha, a outra também fará. Neste caso, devemos conceituar o termo “diferença”, relacionando-o à quantidade de anos que um tem a mais do que o outro.

5. A criança pode colaborar com os pais, ao pendurar as roupas no varal, separando dois prendedores para cada peça. Ao final, pode-se questionar: “Vamos contar quantas roupas penduramos? Se, para cada, precisei de 2 prendedores, quantos prendedores utilizamos? Podes me explicar como descobriste?” A necessidade de pensar a partir de uma experiência real, impulsiona a criança a estabelecer relações de forma significativa e isso a ajudará a interpretar, no futuro, com maior propriedade, questões apresentadas no contexto escolar.

6. Se a família separa o lixo, pode-se problematizar: “Qual o saco que ficou mais cheio (com o maior volume de lixo)? (O do lixo seco). E qual saco é mais pesado? (O do lixo orgânico). Por que será?” Neste caso, a criança está sendo encorajada a confrontar medidas de capacidade (volume) com a medida de massa (peso): nem sempre o que é maior é mais pesado e o que é menor é mais leve.

7. Participar da produção de um bolo é divertido! A culinária proporciona múltiplas aprendizagens para a criança e, em Matemática, especialmente, a aprendizagem sobre os sistemas de medidas. Nesse sentido, torna-se oportuno desafiar a criança a ampliar as relações que estabelece, analisando quais ingredientes são medidos pelas unidades de quilograma (Kg) e grama (g)-, e quais deles são medidos em litros (l) ou mililitros (ml). Importa conversar com ela, para que, observando diferentes embalagens de produtos, construa as relações sobre as unidades de medida de massa (peso): 1 kg = 1000g, meio quilo é a metade de1000 g (1/2kg = 500g); bem como sobre as unidades de medida de capacidade (volume): 1 litro = 1000 ml; meio litro = 500 ml. A partir dessas experiências, é possível que a criança aprenda a diferenciar e conceituar “medida de capacidade/ volume” e “medida de massa/peso”.

8. Pode-se, também, propor que observe diferentes recipientes e estabeleça uma estimativa sobre em qual deles caberia mais água e menos água, ordenando-os. Depois, ela testaria suas hipóteses, transvasando água de um recipiente para outro. E, finalmente, com auxílio de um medidor doméstico, analisaria quantos mililitros (ml) caberiam em cada recipiente, validando suas hipóteses. A criança poderia ser desafiada a pensar sobre quantos ml um recipiente teria a mais do que outro e quantos ml faltariam para que cada recipiente completasse 1 litro = 1000 ml.

9. A criança pode ser encorajada a analisar pacotes de 1kg de arroz, açúcar, feijão ou farinha, dentre outros mantimentos possíveis. Ao segurar dois pacotes, um em cada mão, irá constatar que o peso é o mesmo, ambos possuem 1 kg, mas o tamanho (volume) dos pacotes não é o mesmo. Quando observa que 1kg de açúcar fica em um pacote maior do que o de 1 kg de arroz, ou que ele encherá mais um pote do que 1 kg de arroz, ela está se aproximando do conceito de densidade - que é a relação entre a medida de massa (peso)/ e medida de capacidade (volume) -. Para tanto, é preciso aguçar a curiosidade, problematizando as situações do cotidiano.

10. Nas receitas e na partilha da alimentação entre os familiares (pizza, chocolate, bolachas, balas...) podemos explorar conceitos relacionado à divisão e à fração: metade, quarta parte, oitava parte. A conversa sobre esses conceitos, ao longo das vivências, desafiando a criança a estabelecer relações e a explicar como pensou, favorece o desenvolvimento matemático.

11. Para os mais velhos, as informações que, sistematicamente, são apresentadas nos telejornais sobre o novo coronavírus/ COVID 19 podem se transformar em objeto de estudo. Assim, curvas de crescimento de forma exponencial e não linear; percentuais; relações de proporção; densidade populacional, dentre outros gráficos e dados, devem ser tratados de forma conjunta, problematizando-os, no decorrer da pandemia. Certamente, isso mobilizará o estudante a compreender melhor o episódio que estamos vivenciando, a partir de conceitos e operações matemáticas. Essa compreensão irá colaborar para que a família assuma atitudes mais favoráveis ao enfrentamento da pandemia pelo novo coronavírus.

12. E não podemos deixar de citar os Jogos de mesa, de tabuleiro. Ao participar de jogos, junto com os pais e os irmãos, a criança, além de realizar uma atividade prazerosa, é desafiada a estabelecer várias relações, que favorecem o desenvolvimento do pensamento lógico. Ao jogar, somos desafiados a desenvolver estratégias de cálculo mental para a contagem de pontos. O jogo nos convoca a pensar no ponto de vista do outro e a coordenar nossa jogada com a do adversário; também necessitamos combinar e respeitar regras, saber perder; saber ganhar, assumir o compromisso pela construção de um clima positivo de diversão compartilhada. O Jogo, portanto, favorece o desenvolvimento da autonomia cognitiva, afetiva e moral. Cabe destacar, aqui, alguns jogos antigos, mas sempre interessantes: jogo da velha, amarelinha, dominó, varetas, batalha naval, cara a cara, dama, caça ao tesouro, banco imobiliário, trunfo, general (com dados), jogos de cartas, xadrez ...

É importante considerar que os exemplos aqui propostos para o trabalho de Matemática em tempos de ensino domiciliar, favorecem não só o desenvolvimento matemático, mas a construção, progressiva, da autonomia da criança e de competências necessárias à formação cidadã. Para tanto, a intencionalidade do adulto, na interação com a criança, e a sua disposição de também aprender, pesquisar, dialogar e de se divertir com o filho, estabelecendo relacionamento de companheirismo, são fundamentais, o que, no entanto, não dispensa a relação de autoridade necessária ao adulto para a condução de todo o processo educativo.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas, certamente, cada família, ao ler esse texto, já está sinalizando situações cotidianas próprias em que os conceitos e as relações matemáticas são, ou podem vir a ser, objeto de trabalho que qualifiquem esse novo tempo de convívio familiar. Esse jeito de aprender Matemática, em parceria com os pais, não será abandonado no retorno à escola. Trabalhado dessa forma, pais e filhos constroem uma cumplicidade que tende a permanecer, garantindo a realização de novas aprendizagens compartilhadas, no futuro, tanto de conteúdos tipicamente escolares quanto dos advindos de novas situações-problema que irão enfrentar no cotidiano.

Por outro lado, a escola e os professores também se transformaram, aprendendo a pesquisar e a utilizar novos recursos da tecnologia digital em seus planejamentos, e descobriram novas formas de se relacionar com colegas, pais e alunos. Essas aprendizagens, certamente, irão permanecer para qualificar o trabalho educativo no retorno à escola. Assim, uma nova cultura está sendo construída nas relações família-escola e nos processos de ensinar e aprender. Essas relações permanecerão, serão transformadas, mas não eliminadas, pois foram constituintes de um novo jeito de viver, aprender e sobreviver. Todos se tornaram mais cooperativos, solidários, criativos e mais humanos. Deus os abençoe!

Por Ana Cristina Souza Rangel
Mestre em Educação, autora dos livros Matemática da Minha Vida – Editora NEEMI

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